quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Grandes absurdos (1). Do pagamento do ensino secundário.

Há absurdos que servem para salvar. Os pequenos absurdos quotidianos a que se referia o O'Neill e que inspiraram o nome deste blogue. Pequenas coisas que enchem os dias de perplexidade e que abalam as certezas enraizadas, os hábitos distraídos.
Depois há os absurdos que servem para condenar. Absurdos que são agressões, que amachucam, que doem. Estes multiplicam-se, nos dias que correm, e contra eles é preciso erguer a voz, mesmo que uma cortina de indiferença pareça mais forte. Não é, mas os donos dos grandes absurdos são muito eficazes a convencer as pessoas que não vale a pena gritar.

O grande absurdo de hoje é a intenção do governo de introduzir propinas no ensino secundário. Só a menção a um ensino secundário gratuito já é um pouco risível, considerando que um ordenado mínimo chega à justa para comprar livros e material escolar no início do ano letivo - um ordenado por filho, claro! - e que, ao longo dos meses, se multiplicam as despesas com refeições, deslocações, livros de apoio, material de desgaste, viagens de estudo e sem um número de parcelas que, todas somadinhas, fazem com que os pais da (moribunda) classe média, sem acesso a (moribundos) apoios e subsídios tenham de fazer algumas manobra de presdigitação para chegar ao fim do mês com as contas pagas.
Mas como todo este esforço financeiro parece pouco aos que nos (des)governam, para mais num contexto de empobrecimento generalizado (e que tenderá a agravar-se nos próximos anos), pretende-se que as famílias paguem o ensino secundário, como se se tratasse, enfim, de um "extra" que o Estado não tem obrigação de assegurar. Se só o ensino básico tem de ser "gratuito", assume-se, como princípio ideológico, que possuir o ensino secundário completo é algo de dispensável na admirável sociedade futura - apesar, pasme-se, de este último ser obrigatório (delírios do anterior governo, está visto).
Seria interessante ouvir o ministro da educação sobre este tema. Seria interessante saber que expectativas têm os pais para os seus filhos pequenos - os pais desempregados, os pais dos ordenados mínimos, os pais das casas penhoradas, os pais que dependem dos seus próprios pais para ter comida na mesa. Perguntem aos que têm hoje 40, 50, 60 anos, e não foram além da 4ª classe ou do ciclo preparatório por falta de recursos, o que pensam destas ideias. Perguntem à Alice, minha colega de carteira no ciclo preparatório, aluna de quatros e cincos, e que aos 12 anos foi para uma fábrica de calçado fazer uns biscates, até ser possível, aos 14, tornar-se uma operária de papéis passados.
Repensar o Estado social, dizem eles. A mim ocorre-me uma palavra: obscenidade.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Música para um dia de nevoeiro


Rodrigo Leão & Cinema Ensemble, álbum "A Mãe" (para mim, o melhor do autor até à data), com a participação especial de Neil Hannon.

Uma música à parte, com um arranjo belíssimo e uma voz poderosamente lírica. Comovente. O nevoeiro lá fora parece deixar todas as coisas num estado de suspensão, entre o céu e a terra, entre o presente e um indefinível futuro. Esta música condiz com a bruma.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Dies Irae

DIES IRAE
Apetece cantar,mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.
 
Apetece gritar, mas ninguém grita.
Apetece fugir, mas ninguém foge.
Um fantasma limita
Todo o futuro a este dia de hoje.
 
Apetece morrer,mas ninguém morre.
Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
Os motins onde a alma se arrebata.

 
Miguel Torga
 
Um poema de que me lembrei de repente, do fundo de uma memória há muito apagada. Felizmente o google encontrou-mo, completo (como vivíamos antes do google?). Lido inteiro, parece-me muito ajustado aos tempos que correm, de gritos surdos e revoltas atadas.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Um de novembro

Começou novembro com o último feriado de Todos-os-Santos, um dia cinzento como tem sido recorrente neste outono de pouco sol e muitas sombras. O tempo como o país, numa morrinha amansada, insidiosa, depressiva.
Começa novembro com um feriado que deixará de o ser, pondo termo a uma longa tradição de peregrinações por esse país fora, numa urgência de visita aos cemitérios que nos marca como povo mais vocacionado para o passado do que para o futuro.
Confesso a minha indiferença relativamente ao fim do que é por quase todos concebido como o "dia dos mortos". Não guardo boas recordações deste dia, sou avessa a cultos de cemitérios, velas e flores e parece-me dispensável haver um dia fixo para que os familiares visitem os "seus" mortos, nas "suas" campas.
Contudo, sou sensível ao facto de que, para muitas famílias, esta era uma ocasião única para reencontrarem os que vivem longe. Por causa deste dia, milhares de pessoas deslocavam-se, com uma fidelidade que nem no natal nem em qualquer outra festividade encontrava paralelo. Suponho que o ritual poderá ser transferido para o fim de semana, mas não será a mesma coisa e penso que o poder de mobilização se perderá, em poucos anos.
Novembro é um mês de dias pequenos e passos mais curtos, encolhidos pelo primeiro frio.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Apontamentos do Iowa (3)

Os apontamentos de uma viagem ao Iowa terminam com as pequenas coisas que ficam na memória e que é mais fácil mostrar que contar. As impressões que perduram e que nos tocaram de alguma forma, numa viagem que me levou por roteiros que dificilmente se repetirão.

A caixa de correio que nos habituámos a ver nos filmes é assim tal e qual, com a bandeirinha de lado. Estava para baixo: era sábado e não havia correspondência (suponho).


Outro estereótipo: as repúblicas de estudantes. Esta, a pouca distância da universidade, exibia uma imponente fachada e foi reconhecível, mais uma vez, devido ao extraodinário reportório da cultura quotidiana dos americanos que cada um de nós possui.


Os campos de basebol são imensos e estendem-se nos parques públicos para treino de equipas e dos cidadãos comuns. Num dia gelado, havia crianças e jovens a praticar este jogo de difícil entendimento para os europeus.


Uma casinha de pássaros pendurada numa árvore. Preciosa na simplicidade, para além de ser uma imagem que, mais uma vez, vamos buscar ao fundo da memória dos desenhos animados americanos.


Um casamento apanhado por acaso, no parque da cidade. A noiva, percebi depois, estava dentro da limusina e aguardava por um momento favorável para sair. Esperei e ali estava ela, a correr de chinelos para uma casa de apoio onde, julgo, se acabaria de arranjar. Estava um frio cortante, já o referi. Do anfiteatro saía som de violinos, enquanto os convidados se juntavam pouco impressionados com a rudeza das condições atmosféricas.


terça-feira, 16 de outubro de 2012

Apontamentos do Iowa (2)

As árvores vestidas de outono. Vermelhas, amarelas, verdes. Por todo o lado, majestosas, a impor a sua presença antiga, ordenando os espaços em seu redor, como donas da paisagem humanizada. Seja nos bairros residenciais, no perímetro da universidade, nos parques urbanos ou nas bermas das auto-estradas, as árvores são protagonistas de pleno direito, a lembrar um respeito pela natureza que pode parecer paradoxal, se pensarmos na omnipresença dos automóveis e nas construções desengraçadas.
Em Iowa City, como em muitas cidades americanas, ir a pé a algum lado é algo de bizarro, pois todos circulam em veículos motorizados fora de um breve perímetro de poucas dezenas de metros. Por esta razão quando, no primeiro dia, decidi ir a pé para a universidade, foram pouquíssimas as pessoas que encontrei, dando-me a impressão (falsa) de uma cidade vazia.
Ao sair do hotel, instintivamente (pois não há mapas dignos desse nome para peões) segui o rio e atravessei uma zona residencial que me pareceu ser claramente dominada pela classe média e média-alta. As casas eram, na sua maioria, de linhas tradicionais, como nos habituámos a ver nos filmes e nas séries, com a exceção de uma ou outra mais moderna, com materiais que fugiam à clássica madeira colorida. Porém, o que mais me agradou neste bairro foi a perfeita integração na paisagem - as árvores, como já referi, mas também os relvados um tanto selvagens, naturais, numa continuidade perfeita entre o público e o privado. Sem vedações nem sebes, havia mobiliário de jardim espalhado em frente às casas e quase apetecia sair do passeio e descansar por ali um bocadinho, naqueles espaços de ambígua propriedade.
Este modo de viver, tão contrário ao dos portugueses, agrada-me. Possibilita espaços esteticamente agradáveis e proporciona - pelo menos aparentemente - uma vivência mais descontraída, sem a obsessão dos limites e da privacidade. Habituava-me a viver assim.






quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Apontamentos do Iowa (1)

Um congresso da APSA (American Portuguese Studies Association) levou-me bem longe, até Iowa City, a uma hora de voo de Chicago, mas numa outra outra América que não se alimenta de arranha-céus, táxis apressados ou profissionais com ar competente. Distante, portanto, das imagens estereotipadas que filmes e séries de televisão nos vão incutindo - mas ainda assim familiar em certo sentido, porque existe um imaginário construído que nos transporta para estes ambientes mais afastados das grandes metrópoles, aquilo a que, se quiséssemos usar um cliché, apelidaríamos de "América profunda". Ou, usando outro cliché, mais nosso, "o cu de Judas".
É uma pequena cidade, Iowa City, apesar de a sempre útil wikipedia  esclarecer que é a quinta maior cidade do Estado, com cerca de 68 000 habitantes. A impressão que me ficou foi de uma cidade meia adormecida, com uma downtown aborrecida e feia, apesar da enorme população estudantil. Falo da zona comercial, pois o rio, os bairros residenciais, a universidade, têm outros encantos de que farei apontamento mais adiante.
Iowa City foi a primeira capital do estado com o mesmo nome  (até 1857) e o Old Capitol - atualmente propriedade da universidade - disso faz testemunho. O edifício, com as suas colunas neoclássicas e a cúpula dourada, impõe-se na paisagem monótona da cidade, não sendo raros os turistas (americanos) que nele se detêm, máquinas fotográficas a disparar.
Estava frio, muito frio, e as incursões ao centro foram rápidas, para almoços de passagem. Mas não é aqui que Iowa me deixou marca na memória.






sábado, 29 de setembro de 2012

Sobre a memória

"Eis uma outra forma de darmos sentido à expressão 'lugares de memória'. Tudo o que me acontece acontece no passado (Freud: 'um afcto está sempre no passado'). Mas cada lugar em que me instalo e enraízo é sobretudo, na melancolia das suas referências, o lugar de uma felicidade futura. Praias do Brasil, costas da Bretanha, hotéis decadentes à beira-mar com o bafo quente nas madeiras que rangem e a humidade dos musgos. A memória enrola-se em torno destes dias esguios que se subtraem à indiferença dos calendários. Um lugar da memória não é mais do que isto: um tecido que se deixa embeber pelo azul do céu e pelo azul do mar."

Eduardo Prado Coelho, Tudo o que não escrevi. Diário II, Porto, Edições Asa, 1994, p.194

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Os exames do 4º ano

Reunião dos representantes de turma com a Associação de Pais do agrupamento. A sala é antiga, com tetos altos e paredes desmaiadas, a lembrar os tempos dos pais e não as vivências dos filhos. As vozes ecoam, ampliadas, e é muito o ruído de fundo, a dificultar um fio de discurso coerente. É sempre assim, sabe-se, os pais querem falar das situações concretas que vivem, ou então aproveitam para pôr a conversa em dia com a amiga que está sempre apressada mas ali não, veio com tempo para gastar porque trata-se da escola dos filhos e isso supera outras prioridades.
No meio de assuntos que interessam mais a este ou aquele grupo de pais, emergiu um que, por razões naturais, tinha mais relevância para mim: os exames do 4º ano. Declaro, à partida, a minha total discordância destes exames, por entender que de nada servem e bastantes males trazem. A confusão gerada em torno do assunto confirma as minhas convicções. (Muitos) Pais ansiosos e tensos com a indefinição do modelo e dos conteúdos a avaliar; relatos de (vários) professores a colocar uma pressão enorme sobre crianças e pais logo no início do ano letivo. A sensação é a de que nos preparamos para uma maratona com ritmo de corrida de velocidade. E para quê? Porquê? Qual o objetivo de tudo isto?
Convinha que alguém, de algum modo, em algum momento, explicasse os ganhos de classificar crianças de nove anos. A palavra é propositada: classificar. Avaliar é outra coisa. E isto não é eduquês, é senso comum.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Os filhos fazem nascer as mães

Os filhos fazem nascer as mães muito antes do dia do nascimento, às vezes devagarinho, às vezes num sobressalto, como é próprio dos grandes acontecimentos que mudam para sempre para a face da Terra - pelo menos a face que reconhecemos como nossa, nos limites que nos permitem fincar o pé e saber quem somos.
Os filhos nascem num tempo indeterminado, marcado pelo compasso dos sonhos e dos medos, e crescem acompanhados do barulho ritmado do coração das mães, nessa espera apaixonada que conhece a violência dos contrários - alegria e angústia, esperança e desalento, sorrisos e lágrimas.
Os filhos chegam para fazerem as mães acreditar que são as pessoas mais insignificantes e mais importantes do mundo, que não pertencem a si mesmas e que é preciso cautela com o que fazem de si.
Os filhos reinventam as mães em cada dia porque as olham como uma extensão do seu eu que está a aprender a ser, e para se afastarem precisam de uma mão que os agarre - as mães sabem que têm de ensinar os filhos a saltar os muros que não se cansam de refazer, pedra a pedra.

Há nove anos nasciam as minhas filhas, após uma longa espera que me fez nascer mãe antes de saber sequer do milagre da sua existência. É difícil fugir aos lugares comuns quando se fala dos filhos, sobretudo dos próprios. São as crianças mais especiais do mundo, porque são as minhas. E são as melhores filhas que uma mãe pode ter. O amor diz-se assim, com banalidades. Feliz aniverário, filhas.

sábado, 15 de setembro de 2012

15 de setembro


Letra para um hino

É possível falar sem um nó na garganta
é possível amar sem que venham proibir
é possível correr sem que seja fugir.
Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.

É possível andar sem olhar para o chão
é possível viver sem que seja de rastos.
Os teus olhos nasceram para olhar os astros
se te apetece dizer não grita comigo: não.

É possível viver de outro modo. É
possível transformares em arma a tua mão.
É possível o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.

Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser homem.
É possível ser livre livre livre.


                                  Manuel Alegre

Em homenagem a todos quantos puseram pés ao caminho e mãos à obra. Simbolicamente hoje, visivelmente na rua, mas também pensando em todos os outros que, (ainda) em silêncio, partilham desta luta.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Primeiro dia de escola

Para as minhas filhas, hoje foi o primeiro dia no último ano do primeiro ciclo. Confuso? Bem, na antiga 4ª classe, para simplificar. Assim como assim, estas crianças também vão fazer exame... como na antiga 4ª classe!
Sei que exagero, que a lógica não é a mesma, que o peso desta prova é relativo, e tudo o mais. Mas o sinal está aí e é concordante com outros, de dúbias intenções, que apontam para a nostalgia de um ensino essencialmente elitista, a peneirar os "bons e aplicados" dos "maus", dos "preguiçosos" ou, simplesmente, dos "menos dotados". Aos dez anos, a aposta é feita num crivo que separe e rotule as crianças (e crie mais uns "rankings" tão ao agrado dos lóbis do ensino privado), em vez de se prosseguir um esforço - porque este, com imensíssimas limitações, tem sido feito - no sentido de proporcionar melhores condições de aprendizagem aos que debatem com a escola como quem se debate com um mar revolto.
Começa um novo ano num clima tenso, com a ansiedade não se saber muito bem para onde caminha a escola pública, pois as mudanças são profundas e motivadas por muito mais que a necessidade de cortes orçamentais (e nisso o ministro está a dizer a verdade...infelizmente?).
Regressarei ao tema. Entretanto, fica uma tira deliciosa do "Calvin and Hobbes", a lembrar coisas tão simples como estas: como ensinamos? e o quê? como aprendemos? para quê?... Rir ainda é o melhor remédio...

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

De volta

Depois de um longo interregno, motivado sobretudo pelas férias, mas também por um enfraquecimento da vontade, eis que este blogue está de volta, e para ficar. Os tempos não são de silêncios, mas de vozes, mesmo que por vezes se arraste mais um lamento do que lance um grito.
Dizia O'Neill: "A vida não é de abrolhos./É de abr'olhos.// A vida não é de escolhos./ É de escolhas." Grande poeta, é isso mesmo. Deste lado, num fio de palavras frequentemente desajeitado e frágil, regressa o desejo de fincar reflexões, pensamentos, curiosidades e desabafos.

As férias terminaram. Ficam, como um separador entre o antes e o agora, alguns instantâneos de um tempo que foi de partilha, descanso e luz.








sábado, 21 de julho de 2012

Avaliações e o que está em volta delas

Estamos em época de avaliações e não conheço um único professor que aprecie esta altura do ano, em que supostamente somos os juízes do esforço e do mérito dos estudantes, fazendo o balanço do trabalho de todo um semestre. É uma tarefa ingrata e com o seu quê de subjetividade, sobretudo em áreas como as que leciono, onde grelhas e cotações exatas não combinam com as competências solicitadas. Pior para mim, portanto.
A sucessão de oportunidades de avaliação - avaliação contínua, exame da época normal e exame da época de recurso -, se constitui uma oportunidade justa para os que, por múltiplas razões (nem todas atribuíveis ao próprio), precisam de mais tempo e mais treino para atingir os mínimos exigíveis, revela-se exasperante quando se vê que a comparência aos exames se faz com absoluta displicência. Por vezes, a impressão que dá é que o aluno "oferece" ao professor mais oportunidades para ser aprovado - não o oposto! - e que, portanto, se à oitava ou nona tentativa continua a registar-se uma nota negativa na pauta é porque, decididamente, o docente tem alguma coisa contra ele.
Vem isto a propósito das provas que tenho entre mãos, exames de recurso que têm de ser requeridos e pagos. Observo, com perplexidade, que vários não tentam sequer responder a todas as questões (correspondentes a capítulos centrais do programa), não leram os textos analisados nas aulas, e o pouco que fizeram foi tentar decorar, com muito cuspo ("escupe", como se dizia quando era crinça), alguns apontamentos disponibilizados na plataforma de e-learning.
Sem querer generalizar (até porque não são a maioria), não serão estas atitudes sinal de uma juventude educada na convicção de que os pais, os professores e toda a sociedade existem para os "servir" e de que o seu sucesso ou insucesso depende unicamente de terceiros? Quando se entrega um exame destes e se supõe que aquele tão pouco "talvez chegue", que capacidade de auto-crítica e auto-exigência fomos capazes, enquanto educadores, de (não) criar? Quais as consequências de uma geração amolecida pelo beneplácito do facilitismo?
Repito - não se pode generalizar. Mas é inevitável um sentimento de frustração, de impotência, de preocupação face ao nosso futuro comum. E é (também) por isto que eu e muitos professores não gostamos, mesmo nada, da época de avaliações.

sábado, 7 de julho de 2012

Percursos de Identidade - o livro, por fim

Saiu, está cá fora há algumas semanas, o livro que resultou da minha tese de doutoramento em Literatura Comparada, defendida em 2007. Foi um longo caminho até conhecer as páginas impressas - primeiro as tentativas junto das editoras "comerciais" (que dificilmente aceitam livros académicos com vendas reduzidas), depois o acolhimento pela Fundação Calouste Gulbenkian (sempre ela!), através de um concurso promovido pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, tendo em vista a edição de textos universitários de ciências sociais e humanas.
Saiu, está cá fora, ainda que, pelas razões que se conhecem, o circuito de distribuição seja reduzido e a promoção da obra se encontre limitada à página da internet da livraria da Fundação Calouste Gulbenkian. De resto, assumida a opção de apresentar o texto praticamente na versão original (com algumas atualizações e correções pontuais), a limitação dos públicos é inevitável, que isto de teses com quinhentas e tal páginas...já nem se usa!
Estou orgulhosa, como é evidente, e partilho este "bebé" que tão longa gestação teve, quer na sua elaboração quer na sua apresentação pública. Aqui está, pois, com uma bela fotografia do Rui Campos, a quem aproveito para agradecer publicamente.


quinta-feira, 28 de junho de 2012

Fernando Assis Pacheco e a "Musa Irregular"

Um poeta maior, não dos mais estudados ou dos mais lidos, mas cuja "Musa Irregular" (coletânea de trinta anos de escrita) traz uma respiração soberba, ora desapiedada, ora comovente e íntima. É outra das minhas vozes de eleição e hoje fica um poema "à O'Neill", muito adequado aos tempos que agora correm.

Poeta no supermercado

1Indignar-me é o meu signo diário.
Abrir janelas. Caminhar sobre espadas.
Parar a meio de uma página,
erguer-me da cadeira, indignar-me
é o meu signo diário.

Há países em que se espera
que o homem deixe crescer as patas
da frente, e coma erva, e leve
uma canga minhota como os bois.
E há os poetas que perdoam. Desliza
o mundo, sempre estão bem com ele.
Ou não se apercebem: tanta coisa
para olhar em tão pouco tempo,
a vida tão fugaz, e tanta morte...
Mas a comida esbarra contra os dentes,
digo-vos que um dia acabareis tremendo,
teimar, correr, suar, quebrar os vidros
(indignar-me) é o meu signo diário.

2
Um homem tem que viver.
e tu vê lá não te fiques
- um homem tem que viver
com um pé na Primavera.

Tem que viver
cheio de luz. Saber
um dia com uma saudade burra
dizer adeus a tudo isto.
Um homem (um barco) até ao fim da noite
cantará coisas, irá nadando
por dentro da sua alegria.

Cheio de luz - como um sol.
Beberá na boca da amada.
Fará um filho.
Versos.
Será assaltado pelo mundo.
Caminhará no meio dos desastres,
no meio de miostérios e imprecisões.
Engolirá fogo.

Palavra, um homem tem que ser
prodigioso.
Porque é arriscado ser-se um homem.
É tão difícil, é
(com a precariedade de todos os nomes)
o começo apenas.

terça-feira, 26 de junho de 2012

Dias de verão

Os dias quentes de verão chegaram - dizem que por pouco tempo - e instala-se este torpor que embotoa a vontade e faz, de algum modo, adiar projetos e ações que, noutras condições, ganhariam maior urgência. É verdade, isto, mas também é certo que esta distração tem um lado positivo: lentifica os dias, revelando como seria possível viver mais ao jeito de outras eras, quando a pressa não se tinha convertido numa palavra de ordem.
Gosto do verão, eu, mesmo quando me queixo de todos os seus efeitos secundários, desde os mais prosaicos (os pés inchados, a diminuição de energia) até aos mais subtis (a preguiça de fazer). Gosto do verão e apetece-me este calor que chegou num rompante. Mais que tudo, gosto das noites paradas e da brisa recente que na escuridão se levantou, desde há pouco.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

My funny valentine por Chet Baker


Vem de tempos longínquos esta música, numa recordação que se impôs hoje, sem outra razão que não um encontro casual, como são (quase) todos os que realmente importam na vida. É uma música sempre bela, esta, mas ainda mais comovente na voz distante de Chet Baker. Um momento especial de sensibilidade e bom gosto.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Amigos (3)

A raposa calou-se e considerou por muito tempo o príncipe :
- Por favor... Cativa-me! Disse ela.
- Bem quisera, disse o príncipezinho, mas eu não tenho muito tempo. Tenho amigos a descobrir e muitas coisas a conhecer.
- A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não têm mais tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se tu queres um amigo, cativa-me !
- Que é preciso fazer? Perguntou o príncipezinho.
- É preciso ser paciente, respondeu a raposa. Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal entendidos. Mas, cada dia, te sentará mais perto...
No dia seguinte o príncipezinho voltou.
- Teria sido melhor voltares à mesma hora, disse a raposa. Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta a agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração... É preciso ritos.
- Que é um rito ? Perguntou o príncipezinho.
- É uma coisa muito esquecida também, disse a raposa. É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias; uma hora, das outras horas. Os meus caçadores, por exemplo, possuem um rito. Dançam na quinta-feira com as moças da aldeia. A quinta-feira então é o dia maravilhoso! Vou passear até a vinha. Se os caçadores dançassem qualquer dia, os dias seriam todos iguais, e eu não teria férias !
Assim o príncipezinho cativou a raposa. Mas, quando chegou à hora da partida, a raposa disse :
- Ah ! Eu vou chorar.
- A culpa é tua, disse o príncipezinho, eu não te queria fazer mal; mas tu quiseste que eu te cativasse...
- Quis, disse a raposa.
- Mas tu vais chorar! Disse o príncipezinho.
- Vou, disse a raposa.

- Então, não sais lucrando nada !
- Eu lucro, disse a raposa, por causa da cor do trigo.
Depois ela acrescentou :
- Vai rever as rosas. Tu compreenderás que a tua é a única no mundo. Tu voltarás para me dizer adeus, e eu te farei presente de um segredo.
Foi o príncipezinho rever as rosas :
- Vós não sois absolutamente iguais a minha rosa, vós não sois nada ainda. Ninguém ainda vos cativou, nem cativastes a ninguém. Sois como era a minha raposa. Era uma raposa igual a cem mil outras. Mas eu fiz dela um amigo. Ela é agora única no mundo.
E as rosas estavam desapontadas.
- Sois belas, mas vazias, disse ele ainda: Não se pode morrer por vós. Minha rosa, sem dúvida um transeunte qualquer pensaria que se parece convosco. Ela sozinha é, porém mais importante que vós todas, pois foi a ela que eu reguei. Foi a ela que pus sob a redoma. Foi a ela que abriguei com o para vento. Foi dela que eu matei as larvas (exceto duas ou três por causa das borboletas). Foi a ela que eu escutei queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes. É a minha rosa.
E voltou, então, à raposa :
- Adeus, disse ele...
- Adeus, disse a raposa. Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.
O essencial é invisível para os olhos, repetiu o príncipezinho, a fim de se lembrar.
- Foi o tempo que perdeste com a tua rosa que fez tua rosa tão importante.
- Foi o tempo que eu perdi com a minha rosa... Repetiu o príncipezinho, a fim de se lembrar.
- Os homens esqueceram essa verdade, disse a raposa. Mas tu não a deves esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela rosa...
- Eu sou responsável pela minha rosa... Repetiu o príncipezinho, a fim de se lembrar.

Antoinde de Saint-Exupery, O Pequeno Príncipe, trad. de Vinna Mara Fonseca, disponível em http://www.cirac.org/Principe/Ch21-pt.htm

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Os amigos (2)

Os amigos - os verdadeiros amigos - chegam devagar e instalam-se nas nossas vidas sem pedir licença, com toda a naturalidade, como se a habitassem desde sempre. Não precisamos de os procurar nem de temer a sua perda, porque encontramo-los a cada passo, seja nos cantos das memórias seja no borbulhar dos afazeres. Estão ali, presentes, mesmo quando não os vemos anos a fio ou quando as lembranças das últimas conversas se começam a desvanecer - mas para isso é preciso que tenha havido um tempo de encontro tão absolutamente único, tão completo de intimidade, que a gravação do afeto se torna definitiva.
Os amigos - os verdadeiros amigos - são preciosos e irrepetíveis. É difícil descrever a sua importância sem que se caia no lugar comum, mas diria que são (por banal que seja a imagem) uma âncora que nos agarra à vida, e ao que de mais importante existe nela: a teimosia de acreditar que tudo vale a pena e viver é uma imensa dádiva.
Entre amigos, não se fala muito destas coisas - há um pudor em nos dizermos cúmplices no caminho que vamos fazendo juntos. Mas a cada gesto, a cada palavra, a cada recordação que se partilha, esta certeza emerge de mansinho. Estamos aqui.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Utopia

"Utopia, espécie de loucura capaz de fecundar a razão e de modificar a existência ou, quando menos, de a tornar suportável."
Jacinto do Prado Coelho

"A verdadeira vontade utópica não é de modo algum uma ambição infinita; ela reclama sobretudo o que é simplesmente imediato."
Ernst Bloch

A utopia é, na linguagem comum, confundida com algo de irrealizável, de impossível de concretizar - desconfia-se dos utópicos e das utopias, como se acreditar no que está para além do tangível fosse ameaçador e perigoso - na verdade, é-o, mas de formas que os medrosos nem suspeitam. A utopia será sempre uma forma de estar atento, e dessa atitude nasce uma força de mudança que é urgente nos dias que correm.


sexta-feira, 25 de maio de 2012

Sensacionismo. Álvaro de Campos.

Álvaro de Campos é o meu heterónimo preferido. Exagerado, radical, dorido, contraditório, é, a meu ver, o poeta mais completo do "drama em gente" pessoano - aquele onde o sensacionismo ganha a expressão mais sincera, sem os artifícios de Reis, a ensaiada espontaneidade de Campos ou a intelectualização do ortónimo. É um poeta que escreve em carne viva, sentindo-se nele a paixão e a raiva dos tempos que não se deixam agarrar, seja a infância de todas as nostalgias, o presente absurdamente irreal ou o futuro cuja chegada se adia sempre.
Aquela que é conhecida como "Ode à noite" é um dos poemas de Campos de que mais gosto: gostava quando era adolescente e gosto ainda hoje, resdescoberta a sua poderosa beleza em leituras recentes.



(FINS DE DUAS ODES, NATURALMENTE)


I


......


Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio. Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.


Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas.
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo.
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora.
Na distância subitamente impossível de percorrer.


Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela.
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto.
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos...
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos.
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma.
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.


Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena.
E todos os gestos não saem do nosso corpo
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.

Vem, dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados,
Mão fresca sobre a testa em febre dos humildes.
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não temos.
Que tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde — quem sabe? — Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...


Vem sobre os mares,
Sobre os mares maiores,
Sobre os mares sem horizontes precisos,
Vem e passa a mão pelo dorso da fera,
E acalma-o misteriosamente,
Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!


Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé antepé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.


Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente com um gesto materno afagando.
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar.
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,


A lua começa a ser real.

30-6-1914
“Dois Excertos de Odes (Fins de duas odes, naturalmente)”.
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).
- 155.
1ª publ. in Revista de Portugal, nº4. Lisboa: Jul. 1938.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Sensacionismo. Alberto Caeiro

Sensacionismo. Sensação. Sensação na poesia.
Resumido ao essencial, é isto, mas Fernando Pessoa desdobrou-se em explicações, que os mais curiosos ou interessados podem encontrar em textos de análise e auto-interpretação, distribuídos por várias páginas, num sítio que se recomenda para "amantes e estudiosos" da obra pessoana.
O sensacionismo de Alberto Caeiro é o mais acessível e concreto, espraindo-se por poemas onde se repete a recusa da metafísica, a adesão ao imediatismo da natureza, a importância dos sentidos, sobretudo da visão.
Não é o meu heterónimo preferido, mas é impossível não se deixar embalar pela música de uma poesia aparemente leve e frágil, como uma flor acabada de nascer. O mestre dos outros heterónimos, como Pessoa quis que fosse, conduz o leitor para um ambiente de singeleza, onde cada elemento (natural) retoma o seu valor próprio. E isso é, ainda ou sobretudo nos tempos que correm, uma chamada à terra, contra as estratosféricas preocupações.


IX

Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.

s.d.
“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).
- 39.


 





segunda-feira, 14 de maio de 2012

Viagem a Bilbao (3)

Para encerrar os apontamentos sobre a visita a Bilbao (que outras viagens aguardam por palavras que as tornem de novo presentes), importa descer aquela escadaria desafogada, comprar os bilhetes e entrar, por fim, no Museu Guggenheim.
A arquitetura é tão impressionante por dentro como por fora; munidos de audioguia, o olhar perde-se nas formas redondas e verticais, numa vertigem de planos e linhas. A luz entra sem barreiras e podia-se ficar apenas no átrio, naquela transparência que atordoa os sentidos.

Mas a coleção é variada e interessante.
Gostei muito das esculturas numa escala gigante, de Richard Serra - uma materialidade férrea que, apesar do peso e das proporções, parece pousar no chão com a maior leveza. Nos pisos superiores, exposições temporárias que acrescentam qualquer coisa de novo a cada virar de esquina ou entrar de sala. Arte contemporânea para sentir e refletir, longe (em quase todos os casos) da frieza de outras peças, noutros museus. A luz, sempre a luz, e o branco, e as linhas curvas, e os cruzamentos de planos são a arte que enquadra a arte, e sai-se de lá de sentidos repletos.

Madrid me mata? Bilbao me encanta...

(Nota: um problema com o carregamento das fotos faz o texto sair mesmo assim; veremos se é resolúvel.)

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Esperança




O livro todo do escritor australiano, numa apresentação cheia de encanto:



Shaun Tan, The Red Tree

terça-feira, 8 de maio de 2012

Sétima Legião


Esta banda acompanhou-me durante anos e marcou um período que recordo com alguma nostalgia - um período em que se embalavam os trabalhos e os sonhos ao som de um pequeno rádio-despertador, noite fora. Foi também uma das primeiras bandas que vi ao vivo, no parque da cidade, entre as árvores que delimitavam o pequeno recinto da Queima das Fitas em Coimbra. Era tempos tão diferentes, esses de há 25 anos, alheios à vertigem insane que agora percorre as festas de estudantes, onde o excesso parece ser (quase) a única palavra de ordem.
Os Sétima Legião foram música de fundo de um grupo de amigos que ainda hoje se mantém mais ou menos inalterado. Um de nós partiu absurdamente cedo. Guardo o embalo das melodias e recordo, mais uma vez, que "não se perdeu nada em mim".

segunda-feira, 7 de maio de 2012





Há um princípio de morte em tudo o que é puramente racional.

R. M. Du Gard

terça-feira, 1 de maio de 2012

Primeiro de maio

No dia primeiro de maio as notícias falam de manifestações das centrais sindicais, e um líder sindical destacava que é difícil mobilizar os desempregados e aqueles que temem pelos seus empregos. Que quem se sente ameaçado não vem para a rua manifestar-se, por mais lógico que fosse reforçar o protesto precisamente nestas condições.

No dia primeiro de maio as notícias falam de uma cadeia de supermercados que escolheu precisamente este dia para fazer promoções e por esta razão as pessoas levantaram-se cedo, encheram os corredores e atropelaram-se para chegar às prateleiras.

A loja em vez das ruas. Poupar uns euros em compras em vez de desfilar por direitos que, lá no fundo, já não se acredita que regressem. Será fácil condenar, mas esta situação é semelhante a muitas outras. por exemplo, à dos que compram leite espanhol: comprar português é um luxo para quem meia dúzia de euros ao fim do mês faz imensa diferença.

A resignação chega devagarinho, insidiosamente. Mas muitos de nós têm ainda o dever e a responsabilidade da revolta. Porque temos uma voz. Uma voz continua a ser a mais poderosa das armas.



segunda-feira, 30 de abril de 2012

A vida apenas, sem mistificação

 
 
 
Os ombros suportam o mundo


Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
 
Carlos Drummond de Andrade
 
(Ilustração: Shaun Tan, "Redtree")

quarta-feira, 25 de abril de 2012

A comida guardada na cave e os cravos vermelhos



Tinha eu cinco anos quando se deu o 25 de abril de 74 e do dia, como é natural, não me ficaram traços na memória. Contam-me, porém, que nos meses posteriores se temeu a guerra civil e os meus pais, como outras pessoas na aldeia, começaram a acumular mantimentos, supostamente em segredo. Foi-me dito, então, para não contar a ninguém sobre a existência destas reservas, o que, como se calcula, terá sido o melhor incentivo para revelar, a qualquer visita ocasional, que a minha mãe tinha na cave muitos pacotes de arroz, de açúcar, de massa...
Enquanto criança já mais velhinha, a Revolução de Abril exerceu sempre em mim um imenso fascínio. Lembro-me bastante bem que fazia questão de ir ao jardim colher um cravo vermelho e colocá-lo ao peito, apesar de em casa não haver uma militância política observável. Mais tarde, aquando das comemorações do décimo aniversário da revolução, escrevi um texto para concorrer a um concurso promovido pela recém-criada Associação 25 de Abril: ganhei um diploma e um livro sobre arte, a par de um imenso orgulho por ter sido distinguida. (Lembrem-se que adoro concursos...) Hei-de recuperar este texto, que há de andar lá por casa da minha mãe, talvez na cave onde se esconderam outrora os mantimentos!
Observo agora, falando desta data a jovens para quem 25/04/1974 é uma data não muito diferente de 01/12/1640, que importa, mais que nunca, relembrar, fazer história, mostrar o antes e o depois. Que eu não me lembro como era antes de 1974, em boa verdade. Mas cresci no mesmo ritmo das conquistas de abril, cresci no passo marcado pela evolução da sociedade nestas quase quatro décadas e sei, sabemos todos, que o retrocesso não nos pode deixar indiferentes.
Não concordo com a ausência da Associação 25 de Abril e de Mário Soares do Parlamento neste dia. A luta é diária, daqui para a frente, e queiramos ou não, tem de ser feita nos palcos que a democracia criou, há trinta e oito anos, num dia bem mais claro que o de hoje.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Trinta

Uma aldeia com um nome curioso e uma jornada fotográfica a culminar o curso que com tanto gosto fiz. Não é a mais bela nem a mais interessante das aldeias do concelho da Guarda, mas representa bem as maleitas que a outras afligem: o abandono progressivo, o envelhecimento da população, a degradação do património arquitetónico, o desleixo de muitas das novas construções.
Apesar dos sinais de sombra, há ainda luz nestes caminhos e nestas pedras, e sobretudo na voz dos que saem para conversar um pouco, curiosos por verem o pequeno grupo de máquina fotográfica na mão. Conversam, explicam a razão das casas a cair, contam retalhos de famílias alheadas das raízes.
A manhã estava clara, um pouco fria. As imagens fixam-se na retina, rápidas.






segunda-feira, 23 de abril de 2012

"Aquarela" de Vinicius de Moraes



(...)

E o futuro é uma astronave
Que tentamos pilotar
Não tem tempo nem piedade
Nem tem hora de chegar
Sem pedir licença muda nossa vida
E depois convida a rir ou chorar
Nessa estrada não nos cabe
Conhecer ou ver o que virá
O fim dela ninguém sabe
Bem ao certo onde vai dar
Vamos todos numa linda passarela
De uma aquarela que um dia enfim
Descolorirá

Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo
Que descolorirá
E se faço chover com dois riscos tenho um guarda-chuva
Que descolorirá
Giro um simples compasso e num círculo eu faço o mundo
Que descolorirá

Para a C.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Viagem a Bilbao (2)

Quase ficava esquecida a segunda parte das impressões de viagem de Bilbao, para a qual estava reservado o que de mais óbvio tem a cidade: o museu Guggenheim. A imagem do museu faz parte da memória visual de qualquer pessoa, o que causa sempre o receio de que a "coisa mesma" fique longe das expetativas; no entanto, a desilusão temida não acontece. Gostei muito, mesmo muito do Guggenheim. Das cores que mudam com a hora do dia, entre o cinzento do fim de tarde, quando primeiro o vimos, e o bege da manhã seguinte, num dia com mais sol. Do enorme jardim-urso, a explodir de malmequeres multicoloridos e flashes dos visitantes. Dos planos de escadas, rigorosamente traçados. Dos labirintos de planos e chapas e telhados, como num bailado em que a matéria mais sólida (o titânio) parece flutuar no espaço. Da ponte que enquadra o enorme edifício. Das pessoas que correm, das crianças que brincam, das esplanadas que se enchem, porque os bilbaínos vivem a sua cidade e o seu museu, intensamente.
O Guggeheim encanta e fascina, e ainda nem sequer entrei (fica para a parte 3). Podia existir um monumento assim numa cidade portuguesa? Acredito que sim, que podia ter existido e podia ter mudado a face de uma cidade, de uma região, de um país. Parabéns, Bilbao, este museu tem, como edifício, como conceção e como vivência, a marca do génio.








terça-feira, 17 de abril de 2012

Pátria

Pátria
Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro

Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Do longo relatório irrecusável

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento
E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas

- Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centro

Me dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo.

Sophia de Mello Breyner

Sophia escreveu este poema no tempo da ditadura, quando ansiava e lutava - ela mais um bom punhado de gente - pela liberdade, pela luz e pela justiça. Há algo de profundamente errado no facto de se ler o poema e o sentir dolorosamente atual. Pobre país que é o meu. Atravessamos uma longa, funda noite, e as metáforas são apenas uma tímida muleta para descrever este desespero mudo que vai crescendo em rostos de silêncio e paciência, em traços de fome, num exílio que se instala insidiosamente.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Suzanne e a memória


De forma improvável, esta música acompanhou uma parte da minha adolescência. Não a mais feliz nem luminosa, mas uma parte de mim que hoje, tantos anos passados, recordo com alguma nostalgia e o sentimento de que "não se perdeu nada em mim" (Sophia). O passado só se torna um fardo intolerável se o futuro recusar a reelaboração da memória. Olhar para trás com os pés no presente é descobrir, por vezes com surpresa, que todos os caminhos foram importantes para chegar a uma meta que, sabemo-lo bem, está sempre alguns metros à frente dos nossos passos.

A minha terra (2)


O Parque Pólis, construído sob o patrocínio do programa com o mesmo nome, é um espaço que merece ser elogiado. Bem concebido, representa um oásis numa cidade que, infelizmente, não prima pelo planeamento e pela visão de futuro. A qualquer hora do dia se encontram pessoas, de todas as idades, a desfrutar do ar livre e da natureza, provando que mesmo com um clima agrestre é possível viver "de portas para fora". Sempre que lá vou lembro-me que é bom (apesar dos ventos contrários) viver numa cidade com escala humana. A Guarda e cada um de nós merecemos este espaço.