quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Grandes absurdos (1). Do pagamento do ensino secundário.

Há absurdos que servem para salvar. Os pequenos absurdos quotidianos a que se referia o O'Neill e que inspiraram o nome deste blogue. Pequenas coisas que enchem os dias de perplexidade e que abalam as certezas enraizadas, os hábitos distraídos.
Depois há os absurdos que servem para condenar. Absurdos que são agressões, que amachucam, que doem. Estes multiplicam-se, nos dias que correm, e contra eles é preciso erguer a voz, mesmo que uma cortina de indiferença pareça mais forte. Não é, mas os donos dos grandes absurdos são muito eficazes a convencer as pessoas que não vale a pena gritar.

O grande absurdo de hoje é a intenção do governo de introduzir propinas no ensino secundário. Só a menção a um ensino secundário gratuito já é um pouco risível, considerando que um ordenado mínimo chega à justa para comprar livros e material escolar no início do ano letivo - um ordenado por filho, claro! - e que, ao longo dos meses, se multiplicam as despesas com refeições, deslocações, livros de apoio, material de desgaste, viagens de estudo e sem um número de parcelas que, todas somadinhas, fazem com que os pais da (moribunda) classe média, sem acesso a (moribundos) apoios e subsídios tenham de fazer algumas manobra de presdigitação para chegar ao fim do mês com as contas pagas.
Mas como todo este esforço financeiro parece pouco aos que nos (des)governam, para mais num contexto de empobrecimento generalizado (e que tenderá a agravar-se nos próximos anos), pretende-se que as famílias paguem o ensino secundário, como se se tratasse, enfim, de um "extra" que o Estado não tem obrigação de assegurar. Se só o ensino básico tem de ser "gratuito", assume-se, como princípio ideológico, que possuir o ensino secundário completo é algo de dispensável na admirável sociedade futura - apesar, pasme-se, de este último ser obrigatório (delírios do anterior governo, está visto).
Seria interessante ouvir o ministro da educação sobre este tema. Seria interessante saber que expectativas têm os pais para os seus filhos pequenos - os pais desempregados, os pais dos ordenados mínimos, os pais das casas penhoradas, os pais que dependem dos seus próprios pais para ter comida na mesa. Perguntem aos que têm hoje 40, 50, 60 anos, e não foram além da 4ª classe ou do ciclo preparatório por falta de recursos, o que pensam destas ideias. Perguntem à Alice, minha colega de carteira no ciclo preparatório, aluna de quatros e cincos, e que aos 12 anos foi para uma fábrica de calçado fazer uns biscates, até ser possível, aos 14, tornar-se uma operária de papéis passados.
Repensar o Estado social, dizem eles. A mim ocorre-me uma palavra: obscenidade.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Música para um dia de nevoeiro


Rodrigo Leão & Cinema Ensemble, álbum "A Mãe" (para mim, o melhor do autor até à data), com a participação especial de Neil Hannon.

Uma música à parte, com um arranjo belíssimo e uma voz poderosamente lírica. Comovente. O nevoeiro lá fora parece deixar todas as coisas num estado de suspensão, entre o céu e a terra, entre o presente e um indefinível futuro. Esta música condiz com a bruma.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Dies Irae

DIES IRAE
Apetece cantar,mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.
 
Apetece gritar, mas ninguém grita.
Apetece fugir, mas ninguém foge.
Um fantasma limita
Todo o futuro a este dia de hoje.
 
Apetece morrer,mas ninguém morre.
Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
Os motins onde a alma se arrebata.

 
Miguel Torga
 
Um poema de que me lembrei de repente, do fundo de uma memória há muito apagada. Felizmente o google encontrou-mo, completo (como vivíamos antes do google?). Lido inteiro, parece-me muito ajustado aos tempos que correm, de gritos surdos e revoltas atadas.

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Um de novembro

Começou novembro com o último feriado de Todos-os-Santos, um dia cinzento como tem sido recorrente neste outono de pouco sol e muitas sombras. O tempo como o país, numa morrinha amansada, insidiosa, depressiva.
Começa novembro com um feriado que deixará de o ser, pondo termo a uma longa tradição de peregrinações por esse país fora, numa urgência de visita aos cemitérios que nos marca como povo mais vocacionado para o passado do que para o futuro.
Confesso a minha indiferença relativamente ao fim do que é por quase todos concebido como o "dia dos mortos". Não guardo boas recordações deste dia, sou avessa a cultos de cemitérios, velas e flores e parece-me dispensável haver um dia fixo para que os familiares visitem os "seus" mortos, nas "suas" campas.
Contudo, sou sensível ao facto de que, para muitas famílias, esta era uma ocasião única para reencontrarem os que vivem longe. Por causa deste dia, milhares de pessoas deslocavam-se, com uma fidelidade que nem no natal nem em qualquer outra festividade encontrava paralelo. Suponho que o ritual poderá ser transferido para o fim de semana, mas não será a mesma coisa e penso que o poder de mobilização se perderá, em poucos anos.
Novembro é um mês de dias pequenos e passos mais curtos, encolhidos pelo primeiro frio.