quinta-feira, 28 de junho de 2012

Fernando Assis Pacheco e a "Musa Irregular"

Um poeta maior, não dos mais estudados ou dos mais lidos, mas cuja "Musa Irregular" (coletânea de trinta anos de escrita) traz uma respiração soberba, ora desapiedada, ora comovente e íntima. É outra das minhas vozes de eleição e hoje fica um poema "à O'Neill", muito adequado aos tempos que agora correm.

Poeta no supermercado

1Indignar-me é o meu signo diário.
Abrir janelas. Caminhar sobre espadas.
Parar a meio de uma página,
erguer-me da cadeira, indignar-me
é o meu signo diário.

Há países em que se espera
que o homem deixe crescer as patas
da frente, e coma erva, e leve
uma canga minhota como os bois.
E há os poetas que perdoam. Desliza
o mundo, sempre estão bem com ele.
Ou não se apercebem: tanta coisa
para olhar em tão pouco tempo,
a vida tão fugaz, e tanta morte...
Mas a comida esbarra contra os dentes,
digo-vos que um dia acabareis tremendo,
teimar, correr, suar, quebrar os vidros
(indignar-me) é o meu signo diário.

2
Um homem tem que viver.
e tu vê lá não te fiques
- um homem tem que viver
com um pé na Primavera.

Tem que viver
cheio de luz. Saber
um dia com uma saudade burra
dizer adeus a tudo isto.
Um homem (um barco) até ao fim da noite
cantará coisas, irá nadando
por dentro da sua alegria.

Cheio de luz - como um sol.
Beberá na boca da amada.
Fará um filho.
Versos.
Será assaltado pelo mundo.
Caminhará no meio dos desastres,
no meio de miostérios e imprecisões.
Engolirá fogo.

Palavra, um homem tem que ser
prodigioso.
Porque é arriscado ser-se um homem.
É tão difícil, é
(com a precariedade de todos os nomes)
o começo apenas.

terça-feira, 26 de junho de 2012

Dias de verão

Os dias quentes de verão chegaram - dizem que por pouco tempo - e instala-se este torpor que embotoa a vontade e faz, de algum modo, adiar projetos e ações que, noutras condições, ganhariam maior urgência. É verdade, isto, mas também é certo que esta distração tem um lado positivo: lentifica os dias, revelando como seria possível viver mais ao jeito de outras eras, quando a pressa não se tinha convertido numa palavra de ordem.
Gosto do verão, eu, mesmo quando me queixo de todos os seus efeitos secundários, desde os mais prosaicos (os pés inchados, a diminuição de energia) até aos mais subtis (a preguiça de fazer). Gosto do verão e apetece-me este calor que chegou num rompante. Mais que tudo, gosto das noites paradas e da brisa recente que na escuridão se levantou, desde há pouco.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

My funny valentine por Chet Baker


Vem de tempos longínquos esta música, numa recordação que se impôs hoje, sem outra razão que não um encontro casual, como são (quase) todos os que realmente importam na vida. É uma música sempre bela, esta, mas ainda mais comovente na voz distante de Chet Baker. Um momento especial de sensibilidade e bom gosto.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Amigos (3)

A raposa calou-se e considerou por muito tempo o príncipe :
- Por favor... Cativa-me! Disse ela.
- Bem quisera, disse o príncipezinho, mas eu não tenho muito tempo. Tenho amigos a descobrir e muitas coisas a conhecer.
- A gente só conhece bem as coisas que cativou, disse a raposa. Os homens não têm mais tempo de conhecer coisa alguma. Compram tudo prontinho nas lojas. Mas como não existem lojas de amigos, os homens não têm mais amigos. Se tu queres um amigo, cativa-me !
- Que é preciso fazer? Perguntou o príncipezinho.
- É preciso ser paciente, respondeu a raposa. Tu te sentarás primeiro um pouco longe de mim, assim, na relva. Eu te olharei com o canto do olho e tu não dirás nada. A linguagem é uma fonte de mal entendidos. Mas, cada dia, te sentará mais perto...
No dia seguinte o príncipezinho voltou.
- Teria sido melhor voltares à mesma hora, disse a raposa. Se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde as três eu começarei a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. Às quatro horas, então, estarei inquieta a agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração... É preciso ritos.
- Que é um rito ? Perguntou o príncipezinho.
- É uma coisa muito esquecida também, disse a raposa. É o que faz com que um dia seja diferente dos outros dias; uma hora, das outras horas. Os meus caçadores, por exemplo, possuem um rito. Dançam na quinta-feira com as moças da aldeia. A quinta-feira então é o dia maravilhoso! Vou passear até a vinha. Se os caçadores dançassem qualquer dia, os dias seriam todos iguais, e eu não teria férias !
Assim o príncipezinho cativou a raposa. Mas, quando chegou à hora da partida, a raposa disse :
- Ah ! Eu vou chorar.
- A culpa é tua, disse o príncipezinho, eu não te queria fazer mal; mas tu quiseste que eu te cativasse...
- Quis, disse a raposa.
- Mas tu vais chorar! Disse o príncipezinho.
- Vou, disse a raposa.

- Então, não sais lucrando nada !
- Eu lucro, disse a raposa, por causa da cor do trigo.
Depois ela acrescentou :
- Vai rever as rosas. Tu compreenderás que a tua é a única no mundo. Tu voltarás para me dizer adeus, e eu te farei presente de um segredo.
Foi o príncipezinho rever as rosas :
- Vós não sois absolutamente iguais a minha rosa, vós não sois nada ainda. Ninguém ainda vos cativou, nem cativastes a ninguém. Sois como era a minha raposa. Era uma raposa igual a cem mil outras. Mas eu fiz dela um amigo. Ela é agora única no mundo.
E as rosas estavam desapontadas.
- Sois belas, mas vazias, disse ele ainda: Não se pode morrer por vós. Minha rosa, sem dúvida um transeunte qualquer pensaria que se parece convosco. Ela sozinha é, porém mais importante que vós todas, pois foi a ela que eu reguei. Foi a ela que pus sob a redoma. Foi a ela que abriguei com o para vento. Foi dela que eu matei as larvas (exceto duas ou três por causa das borboletas). Foi a ela que eu escutei queixar-se ou gabar-se, ou mesmo calar-se algumas vezes. É a minha rosa.
E voltou, então, à raposa :
- Adeus, disse ele...
- Adeus, disse a raposa. Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível para os olhos.
O essencial é invisível para os olhos, repetiu o príncipezinho, a fim de se lembrar.
- Foi o tempo que perdeste com a tua rosa que fez tua rosa tão importante.
- Foi o tempo que eu perdi com a minha rosa... Repetiu o príncipezinho, a fim de se lembrar.
- Os homens esqueceram essa verdade, disse a raposa. Mas tu não a deves esquecer. Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas. Tu és responsável pela rosa...
- Eu sou responsável pela minha rosa... Repetiu o príncipezinho, a fim de se lembrar.

Antoinde de Saint-Exupery, O Pequeno Príncipe, trad. de Vinna Mara Fonseca, disponível em http://www.cirac.org/Principe/Ch21-pt.htm

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Os amigos (2)

Os amigos - os verdadeiros amigos - chegam devagar e instalam-se nas nossas vidas sem pedir licença, com toda a naturalidade, como se a habitassem desde sempre. Não precisamos de os procurar nem de temer a sua perda, porque encontramo-los a cada passo, seja nos cantos das memórias seja no borbulhar dos afazeres. Estão ali, presentes, mesmo quando não os vemos anos a fio ou quando as lembranças das últimas conversas se começam a desvanecer - mas para isso é preciso que tenha havido um tempo de encontro tão absolutamente único, tão completo de intimidade, que a gravação do afeto se torna definitiva.
Os amigos - os verdadeiros amigos - são preciosos e irrepetíveis. É difícil descrever a sua importância sem que se caia no lugar comum, mas diria que são (por banal que seja a imagem) uma âncora que nos agarra à vida, e ao que de mais importante existe nela: a teimosia de acreditar que tudo vale a pena e viver é uma imensa dádiva.
Entre amigos, não se fala muito destas coisas - há um pudor em nos dizermos cúmplices no caminho que vamos fazendo juntos. Mas a cada gesto, a cada palavra, a cada recordação que se partilha, esta certeza emerge de mansinho. Estamos aqui.