sábado, 29 de setembro de 2012

Sobre a memória

"Eis uma outra forma de darmos sentido à expressão 'lugares de memória'. Tudo o que me acontece acontece no passado (Freud: 'um afcto está sempre no passado'). Mas cada lugar em que me instalo e enraízo é sobretudo, na melancolia das suas referências, o lugar de uma felicidade futura. Praias do Brasil, costas da Bretanha, hotéis decadentes à beira-mar com o bafo quente nas madeiras que rangem e a humidade dos musgos. A memória enrola-se em torno destes dias esguios que se subtraem à indiferença dos calendários. Um lugar da memória não é mais do que isto: um tecido que se deixa embeber pelo azul do céu e pelo azul do mar."

Eduardo Prado Coelho, Tudo o que não escrevi. Diário II, Porto, Edições Asa, 1994, p.194

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Os exames do 4º ano

Reunião dos representantes de turma com a Associação de Pais do agrupamento. A sala é antiga, com tetos altos e paredes desmaiadas, a lembrar os tempos dos pais e não as vivências dos filhos. As vozes ecoam, ampliadas, e é muito o ruído de fundo, a dificultar um fio de discurso coerente. É sempre assim, sabe-se, os pais querem falar das situações concretas que vivem, ou então aproveitam para pôr a conversa em dia com a amiga que está sempre apressada mas ali não, veio com tempo para gastar porque trata-se da escola dos filhos e isso supera outras prioridades.
No meio de assuntos que interessam mais a este ou aquele grupo de pais, emergiu um que, por razões naturais, tinha mais relevância para mim: os exames do 4º ano. Declaro, à partida, a minha total discordância destes exames, por entender que de nada servem e bastantes males trazem. A confusão gerada em torno do assunto confirma as minhas convicções. (Muitos) Pais ansiosos e tensos com a indefinição do modelo e dos conteúdos a avaliar; relatos de (vários) professores a colocar uma pressão enorme sobre crianças e pais logo no início do ano letivo. A sensação é a de que nos preparamos para uma maratona com ritmo de corrida de velocidade. E para quê? Porquê? Qual o objetivo de tudo isto?
Convinha que alguém, de algum modo, em algum momento, explicasse os ganhos de classificar crianças de nove anos. A palavra é propositada: classificar. Avaliar é outra coisa. E isto não é eduquês, é senso comum.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Os filhos fazem nascer as mães

Os filhos fazem nascer as mães muito antes do dia do nascimento, às vezes devagarinho, às vezes num sobressalto, como é próprio dos grandes acontecimentos que mudam para sempre para a face da Terra - pelo menos a face que reconhecemos como nossa, nos limites que nos permitem fincar o pé e saber quem somos.
Os filhos nascem num tempo indeterminado, marcado pelo compasso dos sonhos e dos medos, e crescem acompanhados do barulho ritmado do coração das mães, nessa espera apaixonada que conhece a violência dos contrários - alegria e angústia, esperança e desalento, sorrisos e lágrimas.
Os filhos chegam para fazerem as mães acreditar que são as pessoas mais insignificantes e mais importantes do mundo, que não pertencem a si mesmas e que é preciso cautela com o que fazem de si.
Os filhos reinventam as mães em cada dia porque as olham como uma extensão do seu eu que está a aprender a ser, e para se afastarem precisam de uma mão que os agarre - as mães sabem que têm de ensinar os filhos a saltar os muros que não se cansam de refazer, pedra a pedra.

Há nove anos nasciam as minhas filhas, após uma longa espera que me fez nascer mãe antes de saber sequer do milagre da sua existência. É difícil fugir aos lugares comuns quando se fala dos filhos, sobretudo dos próprios. São as crianças mais especiais do mundo, porque são as minhas. E são as melhores filhas que uma mãe pode ter. O amor diz-se assim, com banalidades. Feliz aniverário, filhas.

sábado, 15 de setembro de 2012

15 de setembro


Letra para um hino

É possível falar sem um nó na garganta
é possível amar sem que venham proibir
é possível correr sem que seja fugir.
Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.

É possível andar sem olhar para o chão
é possível viver sem que seja de rastos.
Os teus olhos nasceram para olhar os astros
se te apetece dizer não grita comigo: não.

É possível viver de outro modo. É
possível transformares em arma a tua mão.
É possível o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.

Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser homem.
É possível ser livre livre livre.


                                  Manuel Alegre

Em homenagem a todos quantos puseram pés ao caminho e mãos à obra. Simbolicamente hoje, visivelmente na rua, mas também pensando em todos os outros que, (ainda) em silêncio, partilham desta luta.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Primeiro dia de escola

Para as minhas filhas, hoje foi o primeiro dia no último ano do primeiro ciclo. Confuso? Bem, na antiga 4ª classe, para simplificar. Assim como assim, estas crianças também vão fazer exame... como na antiga 4ª classe!
Sei que exagero, que a lógica não é a mesma, que o peso desta prova é relativo, e tudo o mais. Mas o sinal está aí e é concordante com outros, de dúbias intenções, que apontam para a nostalgia de um ensino essencialmente elitista, a peneirar os "bons e aplicados" dos "maus", dos "preguiçosos" ou, simplesmente, dos "menos dotados". Aos dez anos, a aposta é feita num crivo que separe e rotule as crianças (e crie mais uns "rankings" tão ao agrado dos lóbis do ensino privado), em vez de se prosseguir um esforço - porque este, com imensíssimas limitações, tem sido feito - no sentido de proporcionar melhores condições de aprendizagem aos que debatem com a escola como quem se debate com um mar revolto.
Começa um novo ano num clima tenso, com a ansiedade não se saber muito bem para onde caminha a escola pública, pois as mudanças são profundas e motivadas por muito mais que a necessidade de cortes orçamentais (e nisso o ministro está a dizer a verdade...infelizmente?).
Regressarei ao tema. Entretanto, fica uma tira deliciosa do "Calvin and Hobbes", a lembrar coisas tão simples como estas: como ensinamos? e o quê? como aprendemos? para quê?... Rir ainda é o melhor remédio...

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

De volta

Depois de um longo interregno, motivado sobretudo pelas férias, mas também por um enfraquecimento da vontade, eis que este blogue está de volta, e para ficar. Os tempos não são de silêncios, mas de vozes, mesmo que por vezes se arraste mais um lamento do que lance um grito.
Dizia O'Neill: "A vida não é de abrolhos./É de abr'olhos.// A vida não é de escolhos./ É de escolhas." Grande poeta, é isso mesmo. Deste lado, num fio de palavras frequentemente desajeitado e frágil, regressa o desejo de fincar reflexões, pensamentos, curiosidades e desabafos.

As férias terminaram. Ficam, como um separador entre o antes e o agora, alguns instantâneos de um tempo que foi de partilha, descanso e luz.