quinta-feira, 31 de maio de 2012

Utopia

"Utopia, espécie de loucura capaz de fecundar a razão e de modificar a existência ou, quando menos, de a tornar suportável."
Jacinto do Prado Coelho

"A verdadeira vontade utópica não é de modo algum uma ambição infinita; ela reclama sobretudo o que é simplesmente imediato."
Ernst Bloch

A utopia é, na linguagem comum, confundida com algo de irrealizável, de impossível de concretizar - desconfia-se dos utópicos e das utopias, como se acreditar no que está para além do tangível fosse ameaçador e perigoso - na verdade, é-o, mas de formas que os medrosos nem suspeitam. A utopia será sempre uma forma de estar atento, e dessa atitude nasce uma força de mudança que é urgente nos dias que correm.


sexta-feira, 25 de maio de 2012

Sensacionismo. Álvaro de Campos.

Álvaro de Campos é o meu heterónimo preferido. Exagerado, radical, dorido, contraditório, é, a meu ver, o poeta mais completo do "drama em gente" pessoano - aquele onde o sensacionismo ganha a expressão mais sincera, sem os artifícios de Reis, a ensaiada espontaneidade de Campos ou a intelectualização do ortónimo. É um poeta que escreve em carne viva, sentindo-se nele a paixão e a raiva dos tempos que não se deixam agarrar, seja a infância de todas as nostalgias, o presente absurdamente irreal ou o futuro cuja chegada se adia sempre.
Aquela que é conhecida como "Ode à noite" é um dos poemas de Campos de que mais gosto: gostava quando era adolescente e gosto ainda hoje, resdescoberta a sua poderosa beleza em leituras recentes.



(FINS DE DUAS ODES, NATURALMENTE)


I


......


Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio. Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.


Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas.
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo.
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora.
Na distância subitamente impossível de percorrer.


Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela.
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto.
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos...
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos.
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma.
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.


Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena.
E todos os gestos não saem do nosso corpo
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.

Vem, dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados,
Mão fresca sobre a testa em febre dos humildes.
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não temos.
Que tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde — quem sabe? — Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...


Vem sobre os mares,
Sobre os mares maiores,
Sobre os mares sem horizontes precisos,
Vem e passa a mão pelo dorso da fera,
E acalma-o misteriosamente,
Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!


Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé antepé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.


Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente com um gesto materno afagando.
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar.
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,


A lua começa a ser real.

30-6-1914
“Dois Excertos de Odes (Fins de duas odes, naturalmente)”.
Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993).
- 155.
1ª publ. in Revista de Portugal, nº4. Lisboa: Jul. 1938.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Sensacionismo. Alberto Caeiro

Sensacionismo. Sensação. Sensação na poesia.
Resumido ao essencial, é isto, mas Fernando Pessoa desdobrou-se em explicações, que os mais curiosos ou interessados podem encontrar em textos de análise e auto-interpretação, distribuídos por várias páginas, num sítio que se recomenda para "amantes e estudiosos" da obra pessoana.
O sensacionismo de Alberto Caeiro é o mais acessível e concreto, espraindo-se por poemas onde se repete a recusa da metafísica, a adesão ao imediatismo da natureza, a importância dos sentidos, sobretudo da visão.
Não é o meu heterónimo preferido, mas é impossível não se deixar embalar pela música de uma poesia aparemente leve e frágil, como uma flor acabada de nascer. O mestre dos outros heterónimos, como Pessoa quis que fosse, conduz o leitor para um ambiente de singeleza, onde cada elemento (natural) retoma o seu valor próprio. E isso é, ainda ou sobretudo nos tempos que correm, uma chamada à terra, contra as estratosféricas preocupações.


IX

Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.

s.d.
“O Guardador de Rebanhos”. In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).
- 39.


 





segunda-feira, 14 de maio de 2012

Viagem a Bilbao (3)

Para encerrar os apontamentos sobre a visita a Bilbao (que outras viagens aguardam por palavras que as tornem de novo presentes), importa descer aquela escadaria desafogada, comprar os bilhetes e entrar, por fim, no Museu Guggenheim.
A arquitetura é tão impressionante por dentro como por fora; munidos de audioguia, o olhar perde-se nas formas redondas e verticais, numa vertigem de planos e linhas. A luz entra sem barreiras e podia-se ficar apenas no átrio, naquela transparência que atordoa os sentidos.

Mas a coleção é variada e interessante.
Gostei muito das esculturas numa escala gigante, de Richard Serra - uma materialidade férrea que, apesar do peso e das proporções, parece pousar no chão com a maior leveza. Nos pisos superiores, exposições temporárias que acrescentam qualquer coisa de novo a cada virar de esquina ou entrar de sala. Arte contemporânea para sentir e refletir, longe (em quase todos os casos) da frieza de outras peças, noutros museus. A luz, sempre a luz, e o branco, e as linhas curvas, e os cruzamentos de planos são a arte que enquadra a arte, e sai-se de lá de sentidos repletos.

Madrid me mata? Bilbao me encanta...

(Nota: um problema com o carregamento das fotos faz o texto sair mesmo assim; veremos se é resolúvel.)

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Esperança




O livro todo do escritor australiano, numa apresentação cheia de encanto:



Shaun Tan, The Red Tree

terça-feira, 8 de maio de 2012

Sétima Legião


Esta banda acompanhou-me durante anos e marcou um período que recordo com alguma nostalgia - um período em que se embalavam os trabalhos e os sonhos ao som de um pequeno rádio-despertador, noite fora. Foi também uma das primeiras bandas que vi ao vivo, no parque da cidade, entre as árvores que delimitavam o pequeno recinto da Queima das Fitas em Coimbra. Era tempos tão diferentes, esses de há 25 anos, alheios à vertigem insane que agora percorre as festas de estudantes, onde o excesso parece ser (quase) a única palavra de ordem.
Os Sétima Legião foram música de fundo de um grupo de amigos que ainda hoje se mantém mais ou menos inalterado. Um de nós partiu absurdamente cedo. Guardo o embalo das melodias e recordo, mais uma vez, que "não se perdeu nada em mim".

segunda-feira, 7 de maio de 2012





Há um princípio de morte em tudo o que é puramente racional.

R. M. Du Gard

terça-feira, 1 de maio de 2012

Primeiro de maio

No dia primeiro de maio as notícias falam de manifestações das centrais sindicais, e um líder sindical destacava que é difícil mobilizar os desempregados e aqueles que temem pelos seus empregos. Que quem se sente ameaçado não vem para a rua manifestar-se, por mais lógico que fosse reforçar o protesto precisamente nestas condições.

No dia primeiro de maio as notícias falam de uma cadeia de supermercados que escolheu precisamente este dia para fazer promoções e por esta razão as pessoas levantaram-se cedo, encheram os corredores e atropelaram-se para chegar às prateleiras.

A loja em vez das ruas. Poupar uns euros em compras em vez de desfilar por direitos que, lá no fundo, já não se acredita que regressem. Será fácil condenar, mas esta situação é semelhante a muitas outras. por exemplo, à dos que compram leite espanhol: comprar português é um luxo para quem meia dúzia de euros ao fim do mês faz imensa diferença.

A resignação chega devagarinho, insidiosamente. Mas muitos de nós têm ainda o dever e a responsabilidade da revolta. Porque temos uma voz. Uma voz continua a ser a mais poderosa das armas.