segunda-feira, 30 de abril de 2012

A vida apenas, sem mistificação

 
 
 
Os ombros suportam o mundo


Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
 
Carlos Drummond de Andrade
 
(Ilustração: Shaun Tan, "Redtree")

quarta-feira, 25 de abril de 2012

A comida guardada na cave e os cravos vermelhos



Tinha eu cinco anos quando se deu o 25 de abril de 74 e do dia, como é natural, não me ficaram traços na memória. Contam-me, porém, que nos meses posteriores se temeu a guerra civil e os meus pais, como outras pessoas na aldeia, começaram a acumular mantimentos, supostamente em segredo. Foi-me dito, então, para não contar a ninguém sobre a existência destas reservas, o que, como se calcula, terá sido o melhor incentivo para revelar, a qualquer visita ocasional, que a minha mãe tinha na cave muitos pacotes de arroz, de açúcar, de massa...
Enquanto criança já mais velhinha, a Revolução de Abril exerceu sempre em mim um imenso fascínio. Lembro-me bastante bem que fazia questão de ir ao jardim colher um cravo vermelho e colocá-lo ao peito, apesar de em casa não haver uma militância política observável. Mais tarde, aquando das comemorações do décimo aniversário da revolução, escrevi um texto para concorrer a um concurso promovido pela recém-criada Associação 25 de Abril: ganhei um diploma e um livro sobre arte, a par de um imenso orgulho por ter sido distinguida. (Lembrem-se que adoro concursos...) Hei-de recuperar este texto, que há de andar lá por casa da minha mãe, talvez na cave onde se esconderam outrora os mantimentos!
Observo agora, falando desta data a jovens para quem 25/04/1974 é uma data não muito diferente de 01/12/1640, que importa, mais que nunca, relembrar, fazer história, mostrar o antes e o depois. Que eu não me lembro como era antes de 1974, em boa verdade. Mas cresci no mesmo ritmo das conquistas de abril, cresci no passo marcado pela evolução da sociedade nestas quase quatro décadas e sei, sabemos todos, que o retrocesso não nos pode deixar indiferentes.
Não concordo com a ausência da Associação 25 de Abril e de Mário Soares do Parlamento neste dia. A luta é diária, daqui para a frente, e queiramos ou não, tem de ser feita nos palcos que a democracia criou, há trinta e oito anos, num dia bem mais claro que o de hoje.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Trinta

Uma aldeia com um nome curioso e uma jornada fotográfica a culminar o curso que com tanto gosto fiz. Não é a mais bela nem a mais interessante das aldeias do concelho da Guarda, mas representa bem as maleitas que a outras afligem: o abandono progressivo, o envelhecimento da população, a degradação do património arquitetónico, o desleixo de muitas das novas construções.
Apesar dos sinais de sombra, há ainda luz nestes caminhos e nestas pedras, e sobretudo na voz dos que saem para conversar um pouco, curiosos por verem o pequeno grupo de máquina fotográfica na mão. Conversam, explicam a razão das casas a cair, contam retalhos de famílias alheadas das raízes.
A manhã estava clara, um pouco fria. As imagens fixam-se na retina, rápidas.






segunda-feira, 23 de abril de 2012

"Aquarela" de Vinicius de Moraes



(...)

E o futuro é uma astronave
Que tentamos pilotar
Não tem tempo nem piedade
Nem tem hora de chegar
Sem pedir licença muda nossa vida
E depois convida a rir ou chorar
Nessa estrada não nos cabe
Conhecer ou ver o que virá
O fim dela ninguém sabe
Bem ao certo onde vai dar
Vamos todos numa linda passarela
De uma aquarela que um dia enfim
Descolorirá

Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo
Que descolorirá
E se faço chover com dois riscos tenho um guarda-chuva
Que descolorirá
Giro um simples compasso e num círculo eu faço o mundo
Que descolorirá

Para a C.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Viagem a Bilbao (2)

Quase ficava esquecida a segunda parte das impressões de viagem de Bilbao, para a qual estava reservado o que de mais óbvio tem a cidade: o museu Guggenheim. A imagem do museu faz parte da memória visual de qualquer pessoa, o que causa sempre o receio de que a "coisa mesma" fique longe das expetativas; no entanto, a desilusão temida não acontece. Gostei muito, mesmo muito do Guggenheim. Das cores que mudam com a hora do dia, entre o cinzento do fim de tarde, quando primeiro o vimos, e o bege da manhã seguinte, num dia com mais sol. Do enorme jardim-urso, a explodir de malmequeres multicoloridos e flashes dos visitantes. Dos planos de escadas, rigorosamente traçados. Dos labirintos de planos e chapas e telhados, como num bailado em que a matéria mais sólida (o titânio) parece flutuar no espaço. Da ponte que enquadra o enorme edifício. Das pessoas que correm, das crianças que brincam, das esplanadas que se enchem, porque os bilbaínos vivem a sua cidade e o seu museu, intensamente.
O Guggeheim encanta e fascina, e ainda nem sequer entrei (fica para a parte 3). Podia existir um monumento assim numa cidade portuguesa? Acredito que sim, que podia ter existido e podia ter mudado a face de uma cidade, de uma região, de um país. Parabéns, Bilbao, este museu tem, como edifício, como conceção e como vivência, a marca do génio.








terça-feira, 17 de abril de 2012

Pátria

Pátria
Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro

Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Do longo relatório irrecusável

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento
E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas

- Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centro

Me dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo.

Sophia de Mello Breyner

Sophia escreveu este poema no tempo da ditadura, quando ansiava e lutava - ela mais um bom punhado de gente - pela liberdade, pela luz e pela justiça. Há algo de profundamente errado no facto de se ler o poema e o sentir dolorosamente atual. Pobre país que é o meu. Atravessamos uma longa, funda noite, e as metáforas são apenas uma tímida muleta para descrever este desespero mudo que vai crescendo em rostos de silêncio e paciência, em traços de fome, num exílio que se instala insidiosamente.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Suzanne e a memória


De forma improvável, esta música acompanhou uma parte da minha adolescência. Não a mais feliz nem luminosa, mas uma parte de mim que hoje, tantos anos passados, recordo com alguma nostalgia e o sentimento de que "não se perdeu nada em mim" (Sophia). O passado só se torna um fardo intolerável se o futuro recusar a reelaboração da memória. Olhar para trás com os pés no presente é descobrir, por vezes com surpresa, que todos os caminhos foram importantes para chegar a uma meta que, sabemo-lo bem, está sempre alguns metros à frente dos nossos passos.

A minha terra (2)


O Parque Pólis, construído sob o patrocínio do programa com o mesmo nome, é um espaço que merece ser elogiado. Bem concebido, representa um oásis numa cidade que, infelizmente, não prima pelo planeamento e pela visão de futuro. A qualquer hora do dia se encontram pessoas, de todas as idades, a desfrutar do ar livre e da natureza, provando que mesmo com um clima agrestre é possível viver "de portas para fora". Sempre que lá vou lembro-me que é bom (apesar dos ventos contrários) viver numa cidade com escala humana. A Guarda e cada um de nós merecemos este espaço.







sábado, 7 de abril de 2012

Feliz Páscoa

A casa de Deus
Sophia de Mello Breyner Andresen

A casa de Deus está assente no chão
Os seus alicerces mergulham na terra
A casa de Deus está na terra onde os homens estão
Sujeita como os homens à lei da gravidade
Porém como a alma dos homens trespassada
Pelo mistério e a palavra da leveza

Os homens a constroem com materiais
Que vão buscar à terra
Pedra vidro metal cimento cal
Com suas mãos e pensamento a constroem
Mãos certeiras de pedreiro
Mãos hábeis de carpinteiro
Mão exacta do pintor
Cálculo do engenheiro
Desenho e cálculo do arquitecto
Com matéria e luz e espaço a constroem

Com atenção e engenho e esforço e paixão a constroem
Esta casa é feita de matéria para habitação do espírito
Como o corpo do homem é feito de matéria e manifesta o espírito

A casa é construída no tempo
Mas aqui os homens se reúnem em nome do Eterno
Em nome da promessa antiquíssima feita por Deus a Abraão
A Moisés a David e a todos os profetas
Em nome da vida que dada por nós nos é dada

É uma casa que se situa na imanência
Atenta à beleza e à diversidade da imanência
Erguida no mundo que nos foi dado
Para nossa habitação nossa invenção nosso conhecimento
Os homens constroem na terra

Situada no tempo
Para habitação da eternidade

Aqui procuramos pensar reconhecer
Sem máscara ilusão ou disfarce
E procuramos manter nosso espírito atento
Liso como a página em branco

Aqui para além da morte da lacuna da perca e do desastre
Celebramos a Páscoa

Aqui celebramos a claridade
Porque Deus nos criou para a alegria
Páscoa de 1990