quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

As praxes e o tédio

Muito se tem escrito sobre as praxes ultimamente e, como é habitual, os extremos tendem a tocar-se, com manifestações de intolerância de parte a parte, do alto do pedestal das certezas absolutas.
Impossível pensar neste assunto sem recuar à minha própria experiência de universitária, no fim dos anos oitenta do século passado (escrito assim parece ter sido - e foi - há muito, muito tempo). Estudei em Coimbra e, por decisão própria, aderi à praxe oficial, com latada, madrinha, queima do grelo, queima das fitas e todos os restantes rituais, testemunhados por abundantes fotografias, que se escolhiam a dedo nos painéis colocados pelos fotógrafos na fachada da Faculdade de Letras. Tive traje, capa, pasta, fitas e só não tive bengala e cartola porque, no último ano, uma oportunidade única de participar num encontro europeu de jovens (e, por arrastamento, de fazer a primeira viagem de avião) se colocou sem hesitações à frente de tudo o resto. Fora desses momentos formais, com regras bem definidas e um código que os mais velhos nos faziam questão de ensinar, muito pouco houve: umas pinturas na cara, umas aulas fantasma, umas cantorias. Quem não queria participar, bastava afastar-se: o único aviso é que ficariam impedidos de usar o traje académico durante todo o curso, o que parecia lógico a todos.
Reconheço que esta experiência de praxe hoje dificilmente seria reproduzida, mesmo em Coimbra onde, diz-se, os excessos se vão intensificando e os rigores dos códigos há muito foram esquecidos. Observo, na relativamente jovem instituição de ensino superior onde ensino, práticas que não me agradam; não sou indiferente às "brincadeiras" de pesado conteúdo erótico, por exemplo, ou ao consumo incontrolado de álcool. A praxe dura dias e noites, extravasa semanas, ocupa um tempo descomunal. Parece que não há mais nada de interessante para fazer.
E se calhar, para estes jovens a quem apontamos o dedo, no papel de supostos carrascos ou eventuais vítimas, não há. É uma geração entediada, esta. Para a maioria, não foi complicado entrar no ensino superior, não exigiu nenhum esforço extraordinário, e manter-se lá muito menos: a mesada é garantida, as condições logísticas também o são, as famílias andam contentes. As aulas são poucas e ninguém sabe quem está e quem não está, as avaliações demoram e há tantas oportunidades de passar que se não for à primeira será à décima terceira. E depois, para quê ter pressa de acabar um curso quando toda a gente diz que não há emprego e a dependência dos pais pode continuar ad aeternum.
Desculpem-me o simplismo da leitura, mas eu vejo nos excessos daquilo a que chamam praxe o tédio de uma geração entalada entre a abundância em que cresceram e um futuro em que não acreditam. Sem motivação, sem objetivos e sem exigências, estes jovens ocupam tempo e espaço nas suas vidas com algo que lhes dá a ilusão de um propósito, de terem algo para fazer, em que acreditar ou no que investir. Uns têm orgulho em que lhes dispensem atenção; outros encontram nesses momentos o único poder que experimentaram na vida, porque tudo o resto lhes é oferecido de bandeja.
É uma crise de valores, sim, mas como já li algures, uma sociedade que consome programas de televisão onde se promove a ridicularização dos participantes, eleva ao estatuto de figura pública quem melhor ilustra a boçalidade e a ordinarice, ou bate recordes de vendas de revista com a devassa da vida privada, não tem grande moralidade para acusar. Já dizia o outro, isto anda tudo ligado...

Estes momentos de grande indignação coletiva - contra, a favor ou assim-assim - são assépticos, porque não vão à raiz dos problemas e acabam por proporcionar um grande alívio na nossa culpa geracional. O que fizemos, afinal, para merecer estes jovens aparentemente amorais? Mas, repare-se bem, não são todos, nem sequer a maioria. Felizmente.