sexta-feira, 25 de abril de 2014

Há quarenta anos

Há quarenta anos eu tinha quatro anos e meio. Era pequena e não me lembro de nada. Não terei ido à escola, acompanhando a minha mãe, como era hábito (não existiam infantários nem pré-escolar). As pessoas, na aldeia, ficaram por casa, entre o receio do desconhecido e a alegria contida da mudança.
Os meses passaram e veio o fantasma da guerra. Dizia-se (contam-me) que vinham aí tempos de fome e as pessoas começaram a armazenar, em semi-segredo, massa, arroz, azeite, óleo, açúcar, farinha. Na casa nova para onde me tinha mudado, era na cave que estavam os caixotes e a minha mãe avisou-me que não se dizia a ninguém que aquilo lá estava. Claro, rezam as crónicas que era a primeira coisa que eu dizia a todos quantos vinham a casa. Psicologia básica de criança de cinco anos.
Estas são as memórias que tenho por interposta mãe, mas tenho outras, construídas por mim, do 25 de abril. Lembro-me de ter a certezinha absoluta que era um dia muito importante. E de procurar no jardim cravos vermelhos, porque considerava nesta data era preciso andar com um preso na roupa.
Nos cinco anos da revolução, eu tinha nove anos e enviei um texto para um concurso promovido pela Associação 25 de Abril. Fui distinguida e recebi um diploma que mantive durante anos na porta no roupeiro. Ainda se cantava a plenos pulmões, nos passeios da escola, "uma gaivota voava voava".  E continuava a ter a certezinha que era um dia muito importante.
Passaram quarenta anos. Na cave da minha casa da infância não há caixotes de alimentos com medo da guerra, não vi por lá cravos e o diploma está guardado em parte incerta. Mas continuo a ter a certezinha que é um dia muito importante.