quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Sobre a prova de acesso à carreira docente

Ponto de partida: não sou contra uma prova de acesso à carreira docente. Quem tenha contacto próximo com estudantes de formação inicial de professores é forçado a reconhecer que há licenciados (agora mestres) que não têm as competências necessárias para lecionar. Sim, apesar de terem um grau académico (aliás, dois) concedido por uma instituição de ensino superior. Deveria chegar, mas não chega, sobretudo porque as mudanças nos modelos de formação de professores nos últimos anos, somado ao encolhimento da duração dos cursos via regime de Bolonha, enfraqueceram em muito a solidez científica e pedagógica dos candidatos a docentes.
O modelo de um exame de acesso à carreira docente não é novo e encontra-se disseminado por essa Europa fora, incluindo os países com que se gosta de encher a boca para falar de boa escola. O pressuposto de que é na atividade profissional que se põe à prova a capacidade de cada um esbarra, no caso dos professores, no facto de que nunca ter sido possível implementar um sistema de avaliação efetivo, que penalize os maus docentes (por razões científicas, pedagógicas ou outras) e premeie os bons. Todo o sistema público de ensino, desde os concursos de colocação de professores à  progressão na carreira (quando a havia), negligencia as provas de mérito ou demérito evidenciadas no dia-a-dia profissional. Isso, para mim, é o essencial da questão e onde seria preciso intervir, com coragem e com honestidade.
Ponto de chegada: sou contra o arremedo de prova de acesso à carreira docente anunciado para o dia 18 de dezembro. Pela imposição da prova a docentes com muitos anos de serviço e que apenas não são efetivos devido a uma lei iníqua, condenada em instâncias europeias. Pela matriz dúbia, tardiamente anunciada e cujos objetivos estão longe de ser claros. Pelo facto de ser única e, portanto, não poder contemplar qualquer especificidade científica. Sejamos claros: numa altura em que se incentiva a rescisão de professores e, em última análise, está na manga dos propósitos governamentais o despedimento de  docentes efetivos, esta prova tem como primordial função captar receitas, que não serão tão pequenas como isso. Talvez um dia regresse um governo preocupado com a qualidade do ensino público, há que ter fé.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Sobre os rankings das escolas

Ponto de partida: não sou contra os rankings das escolas. Especificando: não tenho nada contra a divulgação dos dados relativos às classificações nos exames de alunos do sistema básico e secundário português, sobretudo quando acompanhados por informações que permitem conhecer um bocadinho melhor a realidade das nossas escolas. Será difícil negar que a publicação destes rankings gera, todos os anos e por alguns dias ou semanas, um debate público sobre temas que a sociedade, no resto do tempo, tende a evitar. Sejam eles as inevitáveis comparações entre escolas públicas e privadas, sejam as razões que empurram as escolas para cima ou para baixo na tabela. E isto nada tem de negativo: vamos esconder a cabeça na areia e fazer de conta que existe igualdade no acesso à educação? Vamos brincar à igualdade de oportunidades?
Neste sentido, compreendo, por exemplo, as reservas de Maria de Lurdes Rodrigues, mas retenho sobretudo a conclusão de que "O problema não está (...) nos rankings, mas no mau uso que deles se faz." Ou, posto de um outro modo, é um mau sistema de aferição do desempenho (dos alunos de cada uma das) escolas, mas é, até ver, o único em que se tem investido tempo e dinheiro - um esforço privado, sublinhe-se. Falta, realmente, às instituições públicas, uma cultura de avaliação, que pudesse trazer outros contributos, a outros níveis, mas isso são "outros quinhentos".
Como muito boa gente tem observado, nunca a escola foi tão desigual, no sentido em que, tendencialmente, reproduz as assimetrias socioeconómicas, mostrando-se incapaz de as esbater - com honrosas e meritórias exceções. Joaquim Azevedo é muito claro: "Sabemos que a selectividade escolar é imensa e que ela tem a cara da selectividade social. Mas não sabemos como nem porquê, quando ocorre e com que consequências, tanto para os alunos como para as escolas e as suas opções, para o ensino superior e para o conjunto da sociedade." Os rankings não se limitam a pôr o dedo na ferida - escarafuncham-na até a dor ser insuportável, e a consequência é levar-nos a acreditar que não há nada a fazer senão colocar um grande penso e não pensar muito no assunto.
Desistimos dos alunos dos chamados "bairros problemáticos" das periferias das grandes cidades, como desistimos das escolas do interior mais pobre. Desistimos de acreditar que não tem de ser assim, e sempre que uma escola improvável aparece a meio da tabela, interrogamo-nos se não terá sido um acaso. Reduzir os rankings a uma legitimação das escolas privadas é uma forma enviesada de desviar a discussão do essencial. Que passa pelo direito que cada família tem de confiar na escola onde os filhos estudam (e não, nada tem a ver com "cheques ensino"). Ou pela capacidade que temos de dar esperança aos excluídos, de quem nada se espera.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

O prazer de ler

Levei ontem as minhas filhas de dez anos à livraria do centro comercial. Sempre que lá passamos querem entrar, mesmo que não haja planos de comprar nada. Compreendo-as, eu também entro na livraria de cada vez que passo à porta, mesmo que tenha prometido a mim mesma não trazer nada. A M. já sabia que tinha saído um novo livro de uma das coleções da Enid Blyton que ela adora. Perante a sugestão de pedir o livro para o Natal, que pouco tarda, desabafou que não conseguia esperar tanto tempo e prontificou-se a comprá-lo com o dinheiro do mealheiro. Não se voltou a separar do livro nesse dia, aproveitou cada bocadinho, e leu sentada, de pé, no carro, a caminhar. Transbordava de felicidade.
Conto este pequeno episódio de uma pequena grande leitora porque o genuíno entusiasmo da M. faz-me lembrar como, para muitos, o puro prazer de ler é completamente desconhecido. A alegria de ter um livro novo para ler ou a ansiedade por aqueles momentos em que ficaremos disponíveis para a leitura. O desconsolo de abandonar personagens, terminada a última página. Até mesmo a desilusão perante uma história que prometia mas não cumpriu.
Ler deve ser, tem de ser uma experiência emocional. Antes de mais e acima de tudo. Porque é esta experiência de simpatias e embirrações que faz um leitor perene, desde os primeiros anos de alfabetização. Infelizmente, não há muito espaço nas escolas para os afetos, e isso também se reflete na ausência de valorização das leituras dos alunos (sejam elas quais forem), na imposição cega de autores e obras (em vez dos "contratos de leitura" que em teoria são possíveis), na indisponibilidade para simplesmente falar dos livros, como quem fala dos amigos ou dos passeios (sem análises críticas para debitar).
Não me espanta nada que, como recentemente divulgado, Portugal seja dos países europeus onde existe menor participação em atividades culturais. Segundo este estudo, 49% dos portugueses aponta a falta de interesse como razão para não ler livros - e parece-me mesmo que este número está abaixo da realidade. Ora, o interesse precisa, sobretudo e simplesmente, de ter espaço para existir. De não ser abafado. De liberdade.
Uma última nota: a minha outra filha trouxe um livro de atividades para meninas, textos breves e muitas imagens. Também ficou muito feliz com a compra. Duas leitoras entusiasmadas é o que desejo continuar a ver pelos anos que aí vêm.